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sábado, 1 de setembro de 2012

ENSAIO - Sevilha andando: a mulher na lírica moderna Aíla Sampaio (11.08.2012)

Ensaio no Caderno LER do Diário do Nordeste da amiga/professora Aíla Sampaio sobre o poeta pernambucano João Cabral de melo Neto. 

Sevilha andando: a mulher na lírica moderna

'Este ensaio faz uma análise do livro Sevilha andando, de João Cabral de Melo Neto, partindo do princípio de que o título da obra apresenta uma metáfora "in absentia" cujo referente evocado é a mulher'

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1168962

Este ensaio faz uma análise do livro Sevilha andando, de João Cabral de Melo Neto, partindo do princípio de que o título da obra apresenta uma metáfora "in absentia" cujo referente evocado é a mulher
Procura-se, nos poemas que compõem o volume, dados que confirmem o termo ausente, aqui sugerido, a fim de comprovar se, através do nome da cidade - Sevilha - sobre o qual recai a atenção imediata do leitor, o poeta celebra em versos a mulher idealizada.

Introdução
Embora nas obras de João Cabral a forma predomine sobre o conteúdo, fazendo aflorar uma poesia iminentemente cerebral, podemos sentir em Sevilha andando a inserção de uma sensualidade sutil já ensaiada nas entrelinhas de Uma faca só lâmina - livro que, tendo como indicação o subtítulo "Serventia das idéias fixas", transparece uma obsessão - obsessão essa que, segundo Marly de Oliveira (1994 p.19) "é sobretudo uma ausência, que deve ser preenchida e, muito provavelmente, de natureza amorosa".

Como assinala Hugo Friedrich (1991 p.211) a respeito da lírica moderna, "Quem é capaz de ouvir, percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto", um amor que está longe de talhar os versos lacrimosos do Romantismo, mas que pode estar embutido nas sugestividades ambíguas através da arte e do efeito da técnica; e o que não falta na poética de Cabral é a linguagem enxuta proveniente da experiência exaustiva com o manejo das palavras.

A metáfora do título
De acordo com Aristóteles (apud Harries, 1992 p.78 "a metáfora consiste em dar à coisa um nome que pertence a outra coisa". Implica, consequentemente, uma nomeação falha, que conduz um movimento de interpretação só concluído quando o termo metafórico é substituído por uma forma mais clara para o entendimento. A lírica moderna, por sua vez, preza a criação de obras que desencoragem a interpretação. Archibald Macleish (apud HARRIES, 1992 pp.80-1) diz que o poema "não deveria significar, mas ser" - pensamento com o qual comunga Valèry (idem p.81) na sua busca pelo estado puramente ideal do poema. É, porém, inegável que o poema aponta para além de si mesmo; ele nunca será suficientemente puro, "suas palavras sempre trarão traços de música sensual da natureza que o poeta não consegue silenciar ao ansiar por uma eternidade fugidia" (HARRIES, 1992 p.86). E, como nos diz Kant (apud HARRIES, 1992 p.81) na Crítica do Juízo, toda obra de arte acaba comportando um sentido; para se tornar pura, ela teria que se negar enquanto obra de arte. A verdade é que se podem perceber significações várias, latentes em símbolos e figuras de linguagem, como se o valor do poema estivesse, assim, no apuro exigido do leitor na leitura subjacente.

Além da linguagem
De acordo com Karsten Harries (1992 p.87), a metáfora implica ausência, pois ela, que é mais do que a abreviação de uma linguagem direta, acena para aquilo que transcende a linguagem. Com base nesta concepção e concordando com a existência da referencialidade na obra de arte, sugerimos que o título da obra - Sevilha andando - encerra uma metáfora, cujo grau de apresentação é "in absentia". Há um termo ausente, um referente que é evocado. Feita a leitura dos poemas que compõem o volume, observamos que o título sintetiza a obra e que o que há de essencial é a objetivação da mulher através da cidade Sevilha, que foi eleita pelo poeta como ideal. Façamos a seguinte formulação: Sevilha, uma mulher andando; Sevilha é mulher como a mulher é Sevilha. Percebemos uma metáfora significativa por decorrer de uma espécie de proximidade semântica obtida entre termos, apesar do distanciamento literal. Segundo Paul Ricoeur, (1992 p. 148), "a similaridade não é nada mais do que essa aproximação que revela um parentesco entre idéias heterogêneas". No domínio das conotações, mulher e cidade passam a ter uma estreita relação, havendo, de certo modo, uma interseção sêmica entre o grau zero e o termo figurado. No sintagma Sevilha andando, temos uma comparação implícita - comparando e comparado terminam por confrontarem-se, dividindo semas interativos.

A estrutura
O livro Sevilha andando traz-nos 31 poemas. Ora percebemos neles uma homenagem à cidade espanhola, numa apologia que denota um forte sentimento de identificação do poeta; ora concebemos essa identificação como pretexto para, através da cidade, colocar em versos a presença da mulher que, como Sevilha, é digna do seu canto de amor. Cidade e mulher contraem uma aliança com as palavras, de modo a driblarem o discernimento do leitor. Alguns títulos de poemas sugerem, em seu bojo, uma antropomorfização ao conferirem à cidade atributos e capacidades não condizentes com a sua condição material e inanimada ("Viver Sevilha", "Cidade de nervos", "Sevilha em casa", "Sevilha andando", "Sevilha ao telefone", "Mulher cidade", "Sevilha viva"). Após a leitura superficial, descobrimos não apenas os atributos da cidade, mas que ela vai se fazendo mulher e adquirindo vida num ser objetivado. Funciona, pois, como um referencial para concretizar um intuito: a construção de poemas para a figura feminina que faz jus às qualidades fascinantes de Sevilha. E nesse jogo mulher-cidade e cidade-mulher o poeta, sem lançar mão de uma linguagem ornamentada, mostra que a lírica tecnicista pode sutilmente ultrapassar a impessoalidade. Senão vejamos em que consiste o segredo de Sevilha: (Texto I)

Leitura do poema
O fascínio que a cidade exerce está no andar da mulher, no modo particular como ela se movimenta, na dinamicidade do corpo ritmado, no manejo especial que encanta e seduz. O jeito tão peculiar da sevilhana andar, no entanto, é redimensionado numa forma de ser, que, ao ser atingida por uma não nativa, torna-a igualmente encantadora. Aí, a não sevilhana passa a ser não apenas sevilhana, mas a própria Sevilha, concentrando, assim, todas as qualidades inerentes à cidade: "Assim, não há nenhum sentido / em usar o "como" contigo: és sevilhana, não és "como a", és Sevilha, não só sua sombra". (É de mais, o símile p.634-5).

Trechos
TEXTO I
De Joaquim Romero Murube

ouvi certa vez: "De Sevilha

ninguém jamais disse tudo.

Mas espero dizê-lo um dia."

Morreste sem haver podido

a prosa daquele projeto ;

Sevilha é um estado de ser,

menos que a prosa pede o verso.

Caro amigo Joaquim Romero,

nem andaluz eu sou, sequer,

mas digo: O tudo de Sevilha

está no andar de sua mulher.

E às vezes, raro, trai Sevilha:

pude encontra-lo muito longe,

no andar de uma não sevilhana,

o tudo que buscas. Ainda? Onde?

(O segredo de Sevilha p.637-8)

FIQUE POR DENTRO
Um breve retrato do artista
João Cabral de Melo Neto (PE, 1920; RJ, 1999) despreza o lirismo tradicional, com sua musicalidade fácil e seu exagero metafórico, concebendo a poesia como uma lenta e sofrida pesquisa de expressão: uma vez escrita, a palavra é retomada, em novas sugestões, até a exaustão das imagens. Busca a palavra objetiva, exata: o geometrismo da linguagem adapta-se à aridez do solo nordestino. Em Morte e Vida Severina, narra a trajetória de um sertanejo, Severino, que abandona o agreste, expulso da terra pela seca, rumo ao literal, encontrando, nesse percurso, apenas miséria e morte. Seu universo poético assenta-se em três temáticas básicas: o Nordeste (retirantes, tradições, folclore, os engenhos, os cemitérios); a Espanha (paisagens, com destaque aos pontos comuns com o Nordeste brasileiro) e a Arte (a pintura de Miró, de Picasso, a metapoesia). Sua poesia é resultado de intensa reflexão, e seu discurso funciona como um aprendizado da linguagem das pedras , dos desafios da existência.

AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*
*Professora da Unifor


ENSAIO

A mulher e a cidade sob os olhos do poeta

11.08.2012




A comparação da mulher com a cidade parece não satisfazer o poeta. Ele as considera tão similares que uma é a outra, não apenas reprodução ou reflexo. E Sevilha - substantivo concreto - pode converter-se facilmente em Sevilha - adjetivo - caracterizador para enfatizar a cidade como atmosfera agradável, como a maneira de ser da mulher completa, capaz de atender às expectativas do homem que a vivencia. (Texto II)

Da atmosfera
A mulher é viva como Sevilha, emana sensações picantes como a atmosfera cítrea da cidade, densa e múltipla como um formigueiro, capaz de ser o centro de tudo, com o poder de dominar e ser o sol até onde o sol é mais impossível. A relação a dois tem como alicerce a mesma atmosfera de Sevilha: (Texto III)

Sevilha é um ideal de relação. A partir dela, os sentimentos vão sendo delineados e, se correspondida a expectativa da mulher também ideal, Sevilha, assim, se interpõe como parâmetro do envolvimento total. Notemos, outra vez, a presença do denso e do múltiplo conotado pela alusão à "formigagem", o relacionamento que adquire consistência através do constante rumor das vidas entrelaçadas, da convivência possível, porque reciprocamente benéfica.

A cal e a pele
Voltando à descoberta do segredo de Sevilha, o poeta subentende nas paredes da cidade, o corpo da mulher: "Qual o segredo de Sevilha? / Saber existir nos extremos / como levando dentro a brasa / que se reacende a qualquer tempo. / Tem a tessitura da carne / na matéria de suas paredes, / boa ao corpo que a acaricia: / que é feminina sua epiderme". Note-se a sugestão do toque dos corpos, da carícia na epiderme feminina, do amor carnal realizado (ou na iminência de).

A alusão indireta à mulher está na alusão direta à cidade que a metaforiza. Sevilha é a mulher que traz dentro de si a brasa da atração constante, de modo que a sua matéria tem a tessitura da carne, aprazível às carícias, ao fogo da conjunção dos corpos. Admitindo que a cidade, matéria rígida, não pode, como tal, reacender a brasa, lhe confere um novo atributo - o nervo: "Mas o esqueleto não pode, / ele que é rígido e de gesso, / reacender a brasa que tem dentro: / Sevilha e mais que tudo, nervo". (Cidade de nervos p.638).

Como se sabe, o nervo é um atributo dos seres vivos e animados; no que concerne à Anatomia, é o responsável pela transmissão das sensações, por via de estímulos. Assim, o poema parece trazer a mulher disfarçada em cidade, não numa cidade qualquer, mas naquela eleita como ideal.

A posse
Sevilha se transporta, transfigurada na intimidade do lar que a acolhe: "Tenho Sevilha em minha casa. / Não sou eu que está chez Sevilha. / É Sevilha em mim, minha sala. / Sevilha e tudo o que ela afia". (Sevilha em casa p.638)

A sensação de ter alcançado o ideal se configura na posse de Sevilha, que agora esta ao alcance da mão. Sevilha-mulher penetra todo o homem numa invasão plena, condutora do fascínio peculiar à cidade. E, tão íntima, Sevilha se faz carne (mulher) e se deixa habitar (possuir): " Tenho Sevilha em minha cama, / eis que Sevilha se faz carne, / eis-me habitando Sevilha como é impossível de habitar-se". (Lições de Sevilha p.644)

O homem possui a mulher concretamente e mostra que a Sevilha-cidade é habitada de uma maneira diferente. Na posse, mulher e cidade se distinguem. O desejo de intensidade do amor partilhado se sobrepõe ao questionamento sobre o tempo da duração: "Se viver-te será curto, / como pequena e Sevilha, / que viver-te seja intenso / carregado qual nova pilha". (Mulher da Panadería p.642).

Observe-se a semelhança de sentido destes versos com os de Vinícius de Morais no "Soneto de fidelidade": "Que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure, vazados numa linguagem seca, menos dada ao tom romântico". Assim, a mulher se faz bússola, iluminando e direcionando o aprendizado do amor que faz a vida renascer, reacendendo o homem: (Texto IV)

Leituras
Encontrar o amor é sair da escuridão. Os inseguros primeiros passos do "voltar a ser" denotam o caminho do aprendizado dos sentimentos adormecidos que renascem; o poeta acorda para reencontrá-los no "sol negro" que metaforiza a mulher morena, tão encantadora e única como Sevilha. A cabeleira negra é sempre referida e reluz como um "farol às avessas", como se o amor fosse uma luz perceptível apenas para quem o experimenta e dimensiona a sua existência no outro ser que, igual a uma bússola, mostra a direção exata da vida.

A ideia de renascimento vem também impressa nestes versos de "Viver Sevilha" (p.636): "Só em Sevilha o corpo está / com todos os sentidos em riste / sentidos que nem se sabia, / antes de andá-la que existissem; / sentidos que fundam num só: / viver num só o que nos vive, / que nos da a mulher de Sevilha / e a cidade ou concha em que vive".

Das sugestões
Sevilha não apenas desperta os sentidos, os mantém em riste - expressão bastante sugestiva no âmbito da sexualidade. O homem atenta para as sensações corpóreas e experimenta estímulos inusitados. O corpo desperto vivencia o amor carnal e descobre na mulher a fonte de um prazer completo, desconhecido até então. O amor funde os dois seres envolvidos, unificando-os. Essa relação é somente possibilitada pela "mulher de Sevilha" e pela "cidade ou concha em que vive" - a mulher sensual, sedutora que, através do seu corpo, dá ao parceiro o acolhimento da concha e o faz, metaforicamente, passear por ele como pela cidade identicamente aconchegante. E, no último poema do livro, o poeta canta a cidade espanhola como a dizê-la que a distância física em que se encontra dela é reduzida pelo fato de ter ao seu lado a presença da mulher que, como fêmea, recria a sua sedução citadina. (Texto V)

O encanto desmesurado de Sevilha presentifica-se constantemente na vida do poeta através da mulher tão completa como mulher, como completa é a cidade em sua ótica. A afeição pela cidade espanhola e por todas as qualidades nela encontradas foram transpostas para a figura feminina que correspondeu às suas idealizações, enlevando-o numa relação plena enquanto homem - como o enlevava Sevilha-cidade numa relação sobretudo aprazível enquanto habitante.

Trechos
TEXTO II
Só com andar pode trazer

a atmosfera Sevilha, cítrea

o formigueiro em festa

que faz o vivo de Sevilha.

Ela caminha qualquer onde

como se andasse por Sevilha.

Andaria até mesmo o inferno

em mulher da Panadería.

Uma mulher que sabe ser

mulher e centro do ao redor,

capaz de na Calle Regina

ou até num claustro ser o sol.

Uma mulher que sabe ser-se

e ser Sevilha, ser sol, desafia

o ao redor, e faz do ao redor

astros de sua astronomia.

(Sevilha andando (I) p.639)

TEXTO III
Carregamos Sevilha, os dois,

quem foi e quem lá nunca foi.

que onde quer que estejamos sozinhos .nos traz Sevilha, seu dentro íntimo,

de uma casa que vai comigo.

e que invoco quando e preciso.

Então, muda todo o ambiente,

ei-nos em Sevilha, de repente,

em nosso a dois e até ouço fora

sua formigagem rumorosa.

(Sevilha de bolso p.641-2)

TEXTO IV
Acordar e voltar a ser,

re-acender num escuro cúbico;

e os primeiros passos que dou

em meu re-ser são inseguros.

Re-ser em tal escuridão

é como navegar sem bússola. .

Eu a tenho, alí, a meu lado,

num sol negro de massa escura:

que é a de tua cabeleira,

farol às avessas, sem luz,

e que me orienta a consciência

como a luz cigana que reluz.

(Sol negro p.642)

TEXTO V
Cantei mal teu ser e teu canto

e enquanto te estive, dez anos;

cantaste em mim e ainda tanto,

cantas em mim teus dois mil anos.

Cantas em mim agora quando

ausente, de vez, de teus quantos,

tenho comigo um ser e estando

que é toda Sevilha caminhando.

(Presença de Sevilha p.651)

SAIBA MAIS
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989.

CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis: Vozes, 1977

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991

DUBOIS, J. et alii. Retórica geral. São Paulo: Cultrix, 1974

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas cidades, 1991 


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1168973


Cultura ENSAIO A poética de Aíla Sampaio (04.08.2012)

A vida nunca se faz plena como se um passe de mágica estivesse por trás das aparências
A eternidade não depende do tempo, mas do desejo com que buscamos possuir a plenitude das coisas. Existir não é o mesmo que viver, assim como escrever é possuir o indizível da língua, e, assim, traduzir também o seu mistério, em face da sua transcendência. De Olhos Entreabertos, os escritores costumam conversar com as estrelas, representar o brilho dos cristais e acolher em seu texto a solidão dos que vegetam enquanto o cosmos agoniza. Leia-se o poema "Tela":

(Texto I) O ato da criação literária é o mais atomizado de todos os processos de representação da arte; é o mais denso e o mais sagrado de todos os prazeres do corpo, e é a forma mais sólida de representação do mundo perante os apelos da história. A pós-modernidade compreende o oblívio de Deus substituído pela ilusão do Capital, como se a mercadoria fosse capaz de intuir o sentido supremo do sagrado; como se a estética do gosto fosse superior à estética da arte, como se o sagrado fosse assim, capaz de sucumbir diante da sedução do efêmero.

A arte da palavra
As marcas e as grifes são apenas miçangas ou enfeites de uma civilização em ruína, esmagada pelo consumo e pela tentação do capital e das suas formas miseráveis de alienação e acumulação. Vejam-se, então, os versos de "Desvarios de maio":

(Texto II)

Assim sendo, urge que a arte, a arte mais sutil e prazerosa, a arte mais pura e a mais sofisticada assumam o seu lugar no discurso do caos, para que a linguagem poética e a sua liturgia possam reconquistar o espaço soberano do texto. A representação da poesia nunca perdeu o seu lugar na história. Na era em que o homem mais decididamente mergulhou na guerra, em nome da ilusão do mito, Ulisses ressurgiu como o herói de todas as idades; e quando o céu e o inferno se fundiram na idade escura da magia, Dante segurou a mão de Virgílio e nos devolveram, por fim, a claridade, o sentido poético da alegoria e a escansão do verso refletido. Os tempos de enfrentamento da linguagem agora são outros, mas a poesia está sutilmente em toda parte. Poetas existem no mundo de todas as maneiras, e poetas ruins é o que não falta em todos os quadrantes do globo. O Ceará é uma terra povoada de muitos escritores e de Academias que não valem o preço com que foram feitos os seus estatutos, mas é também uma terra de veras escritoras, da estirpe de Ana Miranda, Marly Vasconcelos, Natércia Campos, Inez Figueredo, Giselda Medeiros e Tércia Montenegro, dentre outras.

A essa elite de escritoras de talento pertence o nome de Aíla Sampaio, que conheci ainda por ocasião da sua estreia, e cuja evolução venho acompanhando com respeito e curiosidade, porque profícua a sua produção, porque profundos os seus conhecimentos, porque sincero e visceral o seu compromisso com a palavra ritmada e com a palavra fundadora do belo. Como, por exemplo, nos versos de "Silêncio antigo": (Texto III)

Depois de chamar a atenção do público, com a sua tese de mestrado sobre os mistérios de Lygia, e de esquadrinhar as vozes da sua escritura sutil e polifônica, Aíla entrega-se agora à sedução da poesia, abrindo o seu baú de desejos e expondo totalmente aos ventos a vertigem fatal da sua poética fulgurante. E, por entre curvas e desvios, Aíla Sampaio vai construindo a sua arte, tecendo as suas teias, e mergulhando na sua solidão compartilhada, entretendo os seus leitores com a força aliciante da palavra e da sua beleza metafórica.

Das temáticas
A poesia de Aíla Sampaio, nesse seu livro, de título sugestivo, faz-se a um só tempo verbo e escansão, solidão e reticência, e purgação da morte em face da libido do tempo.

O amor, a comunhão a dois e a busca incessante de Eros, para aplacar os desafios da vida e os sentidos cambiantes do corpo, se entrelaçam, nesse livro novo de Aíla Sampaio, como se fossem os seus esteios de maior destaque. Leiam-se os versos do poema "De outro tempo": (Texto IV)

Eis, portanto, De Olhos Entreabertos (Fortaleza, Editora Sponti, 2012), um livro cuja linguagem nos seduz, um livro que dignifica a sua autora e que não desmerece a ensaísta. E que faz da sintaxe do desejo (e também do verso refletido) o espaço poético da arte literária.

O QUE ELES PENSAM
"Na poesia de Aíla Sampaio, uma das marcas mais expressivas reside no cultivo de metáforas entrelaçadas a impressões sensoriais".
CARLOS AUGUSTO VIANAEscritor

"Nesse livro, o tema do amor, explorado sob múltiplos ângulos, abre caminho para a reflexão sobre a própria fragilidade do ser humano".
JOSÉ TELLESPoeta

Trechos
TEXTO I
O tempo costura a vida com pontos de cruz, / fazendo desenhos multicores no véu dos dias. / Na tela em que meu destino foi bordado, / não há manchas de dedos / nem frouxos alinhavos / desfazendo a harmonia. / Nasci, certamente, das bordadeiras de sonhos / que tecem lenços azuis todas as manhãs / para que a realidade, com seu duro fardo, / não pesponte escuridão onde o traço é de luz.

TEXTO II
Desse olhar esgarçado sobre o poente, / dessa lamúria que é o vento antes da chuva, / fiz a tarde com seus desvarios de maio. /// Não fosse hoje um domingo qualquer / eu teria motivos para não ler nada / e veria TV, bandeira branca a meio-palmo / e mansidão para seguir as procissões de Maria. / Mas não é assim o meu desenho / tão fácil de distinguir as cores e as linhas / rascunhadas. /// Surpreendem-me vontades de sesta, / sono profundo ao meio-dia / e saudades que não posso mais matar. / Tanta abstinência, tantas orações / e o coração não sara... / continua a sangrar ao menor esforço / e a me matar aos poucos todos os dias.

TEXTO III
Há sempre uma casa / com seu silêncio antigo / e seus conhecidos fantasmas / a nos habitar. / Há sempre a memória / de um amor interdito, / a dar a ilusão / de que a felicidade está / apenas / no que poderia ter sido. /// O tempo vivido desliza, / guardando abismos que / devoram a carne do tempo. / O que nos pertence / é apenas o presente / e a certeza de que eterno / é somente o que não se realiza.

TEXTO IV
Essa casa desabitada / perdida no abandono dos ventos / (que sopram sem direção) / é o corpo que veste a minha alma. / Suas portas batem / atrás de um adeus sem data, / cavando feridas nas paredes retintas, / guardando ferrugem nas trancas / e escoriações nos portais. /// Há hera nas vigas e nos muros, / fechando porteiras, lacrando janelas / até sempre ou nunca mais. /// No jardim, presente e passado / perdem-se soterrados / pelo musgo que cresceu. /// Dentro de mim, acordado, / geme um silêncio de muitas eras / e grita a lembrança de um tempo / que não é o meu.

DIMAS MACEDOCOLABORADOR*
*Da Academia Cearense de Letras

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1166531


ENSAIO

Aliança com a sensibilidade


Da leitura do livro "De olhos entreabertos", de Aíla Sampaio, brotaram essas reflexões
Existem aqueles que parecem ter feito uma espécie de trato com a superficialidade em algum trecho do caminho, mesmo que muitas vezes sequer percebam a existência desse acordo tácito durante uma jornada inteira.

Atitudes
Para honrar tal compromisso, caminham pela vida a quarteirões de distância da possibilidade de contato com os próprios sentimentos, sejam lá quais forem, e com os alheios, sejam lá quais forem. Amordaçam ternuras. Amarram desejos. Ensurdecem o olhar. Abafam o chamado sincero da alma para os voos mais charmosos e os mergulhos mais enriquecedores. Para honrar tal compromisso, fecham o coração com todo tipo de tranca disponível toda vez que pressentem a ameaça de se tornar vulneráveis às emoções mais vívidas. Fecham porque sabem em algum lugar deles próprios que isso implica arriscar-se a experimentar as dores mais profundas, embora, invariavelmente, de uma maneira ou de outra, elas aconteçam para todos aqui, ali, mais adiante. Fecham, sabedores ou não de que sentir, igualmente, é condição para arriscar-se a experimentar as alegrias mais intensas.

A outra face
Mas existem também aqueles que parecem ter feito uma espécie de aliança com a sensibilidade em algum trecho do caminho, não é raro desde o comecinho dele. Olhar vasto, encantos à flor da alma, mãos prenhes de cultivo, paixões em flor, abrem o coração à preciosa oportunidade da vida e suas possibilidades, ainda que ela não ofereça garantias a ninguém, seja lá de dor ou de alegria.

Ao buscar leveza e coerência na lida com os próprios desejos, arriscam-se à profundeza, arriscam-se à intensidade. Arriscam-se a fazer contato com os próprios sentimentos, sejam lá quais forem, e com os alheios, sejam lá quais forem. Para estes, não é possível saber o sabor da temperatura das ondas, dos perigos e das delícias do mar sem arredar o coração do território aparentemente seguro da areia. Sem levar o corpo e a alma para o experimento intransferível da água. Foi destes, especialmente, que eu me lembrei com nitidez durante a leitura dos poemas do novo livro de Aíla Sampaio, De olhos entreabertos. Leiam-se, por exemplo, os versos do poema "Retrato antigo": (Texto I)

Os poemas de Aíla são belos. São intensos. São voo e mergulho. São imagem e silêncio, linhas e entrelinhas da vívida poesia da poesia de quem vive. Eles me contaram um monte de coisas; algumas, por empatia, fizeram meu coração marejar. Eles me contaram da dor e da alegria. Do vigor e do cansaço. Das ondas saborosas e dos caixotes que machucam, riscos de quem se arrisca entrar no mar e sabe, por lealdade à própria natureza, de que graças ao sabor e apesar do desconforto, continuará a entrar. Eles me contaram dos verões, dos outonos, dos invernos, vividos todos, e cada um deles gestando, do seu modo, primaveras.

Eles me contaram do perene movimento de busca, encontro, desencontro, desencontro no encontro, encontro no desencontro, busca. Não necessariamente nessa ordem, tampouco em ordem alguma, que vida, na prática que desconhece calendários e relógios, não é afeita a obedecer linearidade, sentimento muito menos: "A primavera não voltará": (Texto II)

Viver é vastíssimo, sentir é vastíssimo, e o emprego redundante do superlativo, neste caso, não é por acaso. Viver, sentir, é para quem tem coragem vastíssima. No poema "Unguento", Aíla Sampaio diz uma verdade linda: (Texto III)

Que fortaleza nesses versos: " Amor deve ser unguento, não ferida." Deve, sim. Eu me recuso a desistir de acreditar que esta é a ideia transformadora, feliz, potencial e vasta do amor. E é na busca desse bálsamo, que principia no lume corajoso do nosso próprio ser, que aqueles de nós que não têm trato com a superficialidade arriscam todo dia arredar o coração da areia. Arriscam todo dia entrar no mar. 

Trechos
TEXTO I
Não tenho mais o teu rosto fixo na memória / como um retrato na moldura. / Despencou parede abaixo, / estraçalhou-se no assoalho manchado / dos desejos não-satisfeitos. / Restou o papel encardido de esperas / com a irreconhecível fisionomia / de um homem antigo / cujos olhos não mais se reconhecem. /// São assim as terras por que pisamos inseguros / e das quais voltamos de mãos vazias: / terra apenas, sem flores nem água; / é assim o rosto que já foi amado / quando entra no território do esquecimento: / uma fisionomia borrada apenas, mais nada.

TEXTO II
Quando caírem as últimas folhas do outono / talvez tu te lembres que a primavera / não poderá voltar. / Terás uma lembrança, um retrato talvez, / mas não o amor que eu te dei / e que deveria durar para sempre. / Talvez tu sintas saudade / mas já não poderás matá-la; / talvez queiras de volta as flores / mas já não haverá semente / nem terra onde plantar teus olhos distraídos. / Terei partido num descuido teu qualquer, / sozinha, na noite escura ou ao sol poente, / levando o sentido e as cores da vida / que, nem percebias, / estavam o tempo todo comigo.

TEXTO III
Amar é ficar pelo avesso / corpo descarnado ao léo / suportando o vento. / Ser em carne viva, / e amar quem se arma / com punhal ou palavra / é vício de sofrimento, / não é vida. / Amor deve ser unguento / não ferida.

SAIBA MAIS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977

MOISÉS, Massaud. A criação literária - poesia. São Paulo: Cultrix, 2000

PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1990

SAMPAIO, Aíla. De olhos entreabertos. Fortaleza: Sponti Editora, 2012

ANA JÁCOMOCOLABORADORA*
*Escritora

Uma aposta fremente na vida
Aila Sampaio, poetisa de corpo inteiro, olha - contempla, considera, vê - para depois as descrever, as vias pelas quais o grande segredo do mundo e da vida vem até ao universo do poeta. Ele pertence a todos os humanos, mas acontece que pelas razões da existência, que são um pouco misteriosas, só alguns o conseguem fazer viver. Fazer viver mediante a escrita, que muitos cultivam, mas nem todos alcançam na sua justa dimensão.

Há nessa escrita, que é um continente muito real, uma parte de naturalidade e outra de estranheza - e ambas se unem ou se fundem na matéria específica que são os poemas. O poeta é simultaneamente o demiurgo e o humano demasiado humano que atravessa tanto os lugares de dor como os de alegria completa. Daí que enquanto hacedor (hacedora, neste caso) ele faça comparecer naquilo que as palavras, a escrita, lhe dão, todas as certezas e todas as dúvidas, que é essa a busca que aos verdadeiros poetas fundamenta.

No caso presente, (da leitura do livro de poemas "De olhos entreabertos") a exposição dos sentimentos mais íntimos, os grandes haustos dum silêncio com-participativo e duma voz que, por íntimo pudor, se coloca numa penumbra tanto quanto se revela nos seus momentos de felicidade e lume, é a substância e a matéria duma comoção, pois que é dado ao poeta falar, mas não falar para que tudo continue na mesma e sim porque o que se procura é, exatamente, uma transfiguração. Da vida, da existência de quem escreve e, por último, de quem lê, o universo desses potenciais leitores para que aponta o desejo de permanência que é o que certifica a Poesia que existe para valer.

E assim se entende que em Aíla Sampaio, como em todos os verdadeiros poetas, os poemas não são um álibi, uma estratégia de domínio ou de afirmação mundana, uma arma para estabelecer poderes espúrios, mas sim uma aposta fremente na vida que lhe foi dado viver.

Duma forma que tenho por íntima e solene, mas doada, a autora deste livro expõe-se tanto quanto nos expõe a nós. Porque, ao sermos assim leitores, irmanamo-nos na sua conquista de mais luz - essa luz com que os poemas, pequenas fogueiras brilhando na negrura dos tempos, afixam a sua transmutação, a sua fome de beleza e a sua certeza dum futuro encontrado. Um alumbramento. 

NICOLAU SAIÃO
COLABORADOR*
*Escritor português

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1166542