Seguidores

terça-feira, 4 de maio de 2010

A viagem


Chegou atrasada à estação e dirigiu-se ao guichê nº 3. Deu a senha: Hâdi. O atendente, um homem magro e alto, olhou-a fixamente, através das lentes grossas, e pediu que aguardasse um pouco. Voltou com um livro na mão e perguntou-lhe se estava preparada para a viagem. Só depois da resposta afirmativa, entregou-lhe o tíquete e o volume encadernado.

Tinha poucos minutos para chegar à plataforma 7 e pegar o trem.. Entrou no vagão e procurou o seu assento. A excitação a dominava. Sentou-se, tentando manter a calma. Antes de abrir o livro, observou cuidadosamente as poucas pessoas ao redor. Na sua fileira, estava um homem de paletó, lendo uma revista. Ao se sentir examinado, ele levantou a vista e fixou-a com olhos azuis profundos. Uma fila à frente, sentava-se uma senhora de meia idade, vestida com correção. Nas primeiras poltronas, dois velhinhos conversavam animadamente. Uma jovem, que vestia um terno cinza e segurava uma pasta de couro, escolhera um lugar próximo à janela. O que essas pessoas teriam em comum com seu namorado?

A capa do livro não trazia qualquer inscrição. Na primeira página, havia uma palavra, que devia ser o título, numa língua desconhecida, e nada mais, sequer o nome do autor. Passou as páginas e viu que seria inútil tentar entender algo. Além do texto, havia inúmeros desenhos, alguns bem estranhos: uma figura dividida ao meio, uma metade macho e outra fêmea, dentro de um ovo, que se equilibrava sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos e, embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Em uma das páginas, alguém havia rabiscado uma seta, que apontava para um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em determinados pontos. Concentrou sua atenção nesse símbolo, procurando decifrá-lo.
O trem ganhou velocidade e foi engolido pela escuridão. Não passavam por nenhuma vila ou cidade. A ansiedade impedia seu raciocínio. Será que os outros passageiros também viajavam para o desconhecido? Ela estava ali por acaso. Ou não?

Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera pegar o trem no lugar dele para descobrir aonde ele ia e com quem. Isso só podia ser coisa de mulher. Sorrateiramente, apossou-se do bilhete e decidiu descobrir por si mesma. Agora, varava a noite, sem conhecer o destino ou o motivo da viagem.

Sentiu sede e dirigiu-se ao restaurante, mas lá não havia viva alma. Continuou atravessando os vagões até o último: todos vazios. Voltou assustada. Seus companheiros de viagem continuavam tranqüilamente em seus lugares. Nervosa, disse, em voz alta, que o único vagão ocupado era aquele em que estavam. Todos se entreolharam perplexos. Os dois velhinhos falaram entre si, como se não tivessem entendido. A senhora de meia idade procurou acalmá-la:
— Nesta hora, os passageiros são raros.
— E o restaurante, por que não está funcionando?
— Talvez por causa do horário e do percurso, que é curto.
Contemporizou o homem de olhos azuis.
— Tão curto, que nos deixam sem água?
— Podemos pedir ao camareiro.
— O senhor viu algum camareiro ou outro funcionário qualquer desde que saímos?
Depois da saída, nenhum empregado entrou neste vagão.
De repente, a velocidade diminuiu e um forte clarão surgiu à frente. Lentamente se aproximaram de uma estação tão iluminada, que ela pensou que o dia estivesse nascendo. Quando o trem parou de vez, ela desceu e a jovem de cinza a acompanhou. Procuraram uma indicação que lhes informasse onde estavam, mas não havia qualquer letreiro. O prédio estava deserto e as paredes completamente brancas e nuas. Sentiu um calafrio, segurou o braço da companheira e voltaram correndo a seus lugares. O homem de paletó marinho afirmou que não havia motivo para agitação.
— Pode ser que a estação ainda não tenha sido inaugurada.
Justificou.
— E qual o motivo de tanta iluminação?
— Devem ter esquecido de apagar as luzes.

Bobagem! Insatisfeita, ela lembrou-se do livro. Não o encontrando sobre a cadeira onde o havia deixado, abaixou-se para ver se tinha caído. Estremeceu, ao ouvir a voz da senhora de meia-idade:
— Está procurando isto? Não resisto à curiosidade quando vejo um livro. Que língua é esta? Conheço muitas, mas nunca vi nada semelhante.
— É uma língua indígena.

Desconversou e tomou o volume das mãos da mulher. Nisto, notou que os velhinhos não estavam no vagão. Correu até à janela e respirou aliviada, ao ver que o casal caminhava de volta, apoiando-se um no outro.

Examinou mais uma vez a figura do círculo sextavado: os círculos se embaralhavam e confundiam. Lembrou-se de que, quando criança, seu pai costumava comprar uma revista, que trazia palavras cruzadas, advinhas, jogos e um deles era semelhante ao desenho, só que, no centro, havia sempre um animalzinho perdido. Sua tarefa era ajudá-lo a encontrar a saída. O que isso tinha a ver com a viagem? Essas pessoas estariam em perigo?

Cochilou um pouco e acordou meio confusa. Percebeu que o trem se arrastava lentamente. Olhou para fora e nada viu. Os passageiros arrumavam seus pertences como se, ali, fosse o fim da linha. Ao longe surgiu o prédio de uma estação e, pouco a pouco, pôde divisar uma figura feminina, sozinha de pé na plataforma. A máquina estacionou e a moça, lentamente, virou o rosto para ela. Ficou paralisada pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma.



Lourdinha Leite Barbosa 


Fonte: http://lourdinhalb.blogspot.com/

Uma viagem fantástica



Texto analisado por Aíla Sampaio do conto “A viagem” que está presente no livro " A arte de engolir palavras", de Lourdinha Leite Barbosa,  que vai de encontro com  o mistério em que a narrativa apresenta , em que vai de encontro com o fantástico. 

Escrever é uma arte e, como toda arte, requer perícia. No caso da literatura, pode-se dizer que o texto é ‘tecido’ pela arte de engolir e ‘desengolir’ palavras, numa atitude consciente da criação. Lourdinha Leite Barbosa, em seu livro de contos “A arte de engolir palavras” já anuncia esse processo a partir do título da obra, que Vicência Jaguaribe bem marcou como uma reflexão metalingüística. O conto homônimo é uma metáfora desse exercício, sem dúvida.

Embora se saiba que a inventividade não decorra de técnicas, mas do poder de captar, da imaginação, da observação ou da memória, a matéria sensível que dá ‘vida’ aos enredos, percebe-se, nos contos de Lourdinha, o apuro formal de quem bem domina a técnica do conto. Sua frase enxuta e seus enredos concisos mostram um trabalho de linguagem cuidadoso, elaborado com precisão e consciência. A teoria literária, como as tantas teorias do texto, se diluem no uso de recursos como a intertextualidade, o efeito fantástico e a ambigüidade. Seus textos não subestimam o leitor, ao contrário, convidam-no ao mergulho, à prospecção, à construção da lógica (ou da subversão dela) que subjaz nas entrelinhas.

O Fantástico, gênero que se estabelece a partir de um acontecimento não explicável pelas leis da razão, está presente em pelo menos seis das narrativas do livro. Destaca-se a sutileza com que a autora consegue construir o clima extranatural, de forma tão harmoniosa, ao trabalhar um tema tradicional como ‘o duplo’, no conto “A viagem” (p.32).

É este um dos mais antigos temas explorados pela literatura, tendo aparecido mais notoriamente no século XIX, quando vieram a lume as produções de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Dostoievski. A sua origem, no entanto, remonta à Antigüidade Clássica, pois, como afirma Clément Rosset (1976:61), “os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas de Plauto”. O tema ultrapassa a expressão literária, estendendo-se, ainda, à pintura e à música.

O desdobramento do eu que, na realidade, vem possibilitar o encontro desse eu consigo mesmo, resulta, geralmente, de um conflito existencial que leva o sujeito a buscar a sua verdadeira essência. Clément Rosset (1976) afirma que a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo” (p. 77), ansiada pelo indivíduo em conflito, só é possível através da aniquilação do duplo. Já na literatura romântica, conforme assinala o filósofo, ocorre o contrário, pois “a perda do duplo, do reflexo, da sombra não é [...] libertação, mas efeito maléfico” (p. 78). A destruição do duplo implica a destruição do eu. No seu ponto de vista, inclusive, o duplo não passa de uma ilusão: “Quem repete não diz nada, quer dizer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dispensar qualquer imagem: se não me encontro em mim mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. É preciso então que eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo que não é nada (ROSSET, 1976: 83-4).

A narrativa do conto “A viagem”, de Lourdinha, não dá nenhuma pista sobre a moça, que não tem nome nem idade ou qualquer característica que faça o leitor criar uma imagem. Sua aparição dá-se já quase como um ser etéreo, que vai ao encontro do seu destino. Seu? “Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera descobrir aonde ele ia e com quem”. Logo ela se apercebe que “varou a noite sem saber o motivo e o destino da viagem” e questiona se realmente estaria ali por acaso.

Sem entender , após dar a senha ao ‘homem alto e magro’ do guichê, recebe o tíquete e um livro de capa azul sem qualquer inscrição. Também sem autor e com um título em língua desconhecida, o livro traz textos em língua inteligível e desenhos estranhos: “um ovo, contendo uma figura metade macho, metade fêmea, sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos, e embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Uma seta feita à mão, apontava para um deles: um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em certos pontos”. O mistério se ‘concretiza’ e o significado da senha – Hâdi – bem como do símbolo indicado pela seta, causam certa inquietação no leitor. A personagem, entretanto, limita-se a tentar decifrar o símbolo e a incomodar-se com o vazio na estação, no restaurante e no próprio trem. Só no vagão indicado no tíquete há pessoas.

Assustada com a ausência de estrutura para a viagem – não há sequer camareiro ou funcionário no trem- ela, após percorrer todos os vagões e perceber que não há ninguém, retorna ao seu e se dirige às pessoas, demonstrando seu nervosismo na tentativa de compreender a situação. Os passageiros, na tranquilidade dos que já tudo entenderam, respondem-na com certo desvelo, como a se darem conta de que ela precisa se acalmar: “Os dois velhinhos pareciam não ter entendido. A senhora de meia-idade procurou acalmá-la”; “contemporizou o homem de olhos azuis”; “Todos se entreolharam”; “A jovem de cinza acompanhou-a”. Solenes como os mortos, os passageiros do trem deslizam sobre os trilhos, em velocidade lenta e, sem saberem aonde ou a que vão, chegam a uma estação iluminada, sem indicações; ‘um prédio deserto de paredes completamente brancas e nuas’. A reação da moça, a única a, aparentemente, não saber o que se passa, é de ‘calafrio’, solidão, medo.

O Fantástico vai-se construindo no insólito dos acontecimentos, na ausência de explicações para a situação incomum, na inquietude do comportamento da personagem – assustada, nervosa -, no espaço sem identificação, híbrido como a morada dos mortos... A senha ‘Hâdi’ indicaria uma passagem para a morada de Hades? Perdida no labirinto da passagem entre a vida e a morte, ela decifrou o símbolo e lembrou dos jogos da palavra cruzada, de desenho idêntico... mas sua saída foi o sono, o entorpecimento da consciência até a chegada ao ‘fim da linha’. Não se sabe se esse sono se dá antes ou após a descida na estação iluminada. Não há notações temporais contínuas.

O leitor atento não hesita, sabe que o percurso no trem foi a preparação para a irrupção do insólito; de dentro do trem, ela enxerga seu próprio vulto a esperá-la na estação: “Aos poucos, foi divisando o prédio da estação e um vulto solitário de pé na plataforma. Ao acercar-se, faltou-lhe o ar e todo o seu corpo ficou paralisado pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma”. Embora a personagem esboce reação ante o sobrenatural, o Fantástico se estabelece de forma bastante sutil – moderna, pode-se dizer -, pois a morte não é tratada de forma maléfica, tampouco o vulto que aparece traz contornos de um fantasma; não na acepção do reaparecimento de uma alma penada, que volta à vida para causar assombro, mas da aparição de uma mulher que não sabe sua condição e mantém o seu antigo aspecto, longe das formas indefinidas e evanescentes (HOLANDA, 1986: 757), próprias do fantasma tradicional.

Como já se falou, procurando concretizar essa ilusão __ o duplo __, a literatura fantástica explora tanto a restituição quanto à aniquilação do eu. A linha mais tradicional segue a trilha da literatura romântica que, como citou Rosset, percebe na destruição do duplo a aniquilação do próprio eu. Já a moderna, concebe esse encontro como a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo”. Qual seria o caso do conto “A viagem? Ora, é exatamente a ambigüidade o princípio constitutivo do Fantástico nesse conto: estaria a personagem apenas sonhando e acordara? O conto, possivelmente carregado da preocupação existencial da autora, teria colocado na moça as inquietações humanas dos que se encontram pedidos de si e buscam reencontrar-se? Ou estaria ela mesmo morta, fazendo a viagem simbólica à ‘morada dos mortos’? O discurso não permite respostas e é, certamente, nessa incerteza que o Fantástico se consolida.

BIBLIOGRAFIA:
FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FURTADO, Filipe, A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980
JAGUARIBE, Vicência Mª Freitas. Sobre a arte de engolir palavras e suas outras artes. In: LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002 pp.77-95
LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002
ROSSET, Clément. O real e seu duplo., 1976TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

Aíla Sampaio



Fonte: http://lourdinhalb.blogspot.com/