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quarta-feira, 6 de julho de 2011






REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

Dir. Maria Estela Guedes - Portugal 

Nova Série | 2011 | Número 17




        
             Aíla Sampaio 
Desvarios de maio
Desse olhar esgarçado sobre o poente,
dessa lamúria que é o vento antes da chuva,
fiz a tarde com seus desvarios de maio.
Não fosse hoje um domingo qualquer
eu teria motivos para não ler nada
e veria TV, bandeira branca a meio-palmo
e mansidão para seguir as procissões de Maria.

Mas não é assim o meu desenho
tão fácil de distinguir as cores e as linhas
rascunhadas.
Surpreendem-me vontades de sesta,
sono profundo ao meio-dia
e saudades que não posso mais matar.
Tanta abstinência, tantas orações
e o coração não sara...
continua a sangrar ao menor esforço
e a me matar aos poucos todos os dias. 
Silêncio antigo
Há sempre uma casacom seu silêncio antigo
e seus conhecidos fantasmas
a nos habitar.
Há sempre a memória
de um amor interdito,
a dar a ilusão
de que a felicidade está
apenas
no que poderia ter sido.

O tempo vivido desliza,
guardando abismos que
devoram a carne do tempo.
O que nos pertence
é apenas o presente
e a certeza de que
eterno
é somente o que não se realiza. 
Mudando o enredo
Nada de metades ou frações.Nasci para inteiros,
para desmedidas;
não para a vida inteira, mas para o instante
que pode esvair-se em segundos
ou durar para sempre.

Foi assim desde o início:
o possível, o viável,
a polianesca  resignação
que, por detrás das cortinas,
era desejo mal-resolvido.

Aprendi a sair do eixo
e a brigar com a impossibilidade do prefixo
por isso:
para mudar o enredo da minha história
e seu desfecho.
Viagem
A vida é o vagão de um trema qualquer hora
a soltar-se pelos trilhos.
Se fendem as trancas
na ferrugem das peças,
nenhuma alavanca detém a carga.

Sigo. Passageira sem estação nem rota.
Quando vou, estou indo de volta
como se por mim tudo fosse outra vez
sem ter sido nunca a primeira.

Meu corpo é minha bagagem,
arma atenta à cicatriz
que não fecha
e a que se cava
em tua ausência
materializada na cadeira vazia.

Ao meu lado, o passado:
sentença do efêmero,
algema sem trancas.

Sigo como um vagão
desgarrado do comboio,
querendo ainda obedecer
ao freio das alavancas.
A cidade
A cidade me escondeentre ruas e esquinas,
perdida em mim
como suas avenidas
entre semáforos e arranha-céus.

Não sabe do mundo inteiro
que dorme
quando fecho os olhos
nem que suas ruas e casas
são apenas artérias de um corpo
onde a geografia
não dimensionou mapas.

A cidade me esconde
sob suas luzes
e não percebe
nos subterrâneos abismos
dos meus olhos,
um coração que pulsa
e é maior que ela.
Trama do tempo
O tempo tece sua tramasilenciosamente
como quem arquiteta armadilhas
e submerge ilhas na memória.

O chão seguro de outrora
de repente é abismo,
- subterrânea rua sem saída
em que andamos desavisados dos perigos.

Não guardasse eu a lembrança
das tuas mãos plantando gerâneos
em meus cabelos,
já estaria ao vento a nossa história. 
Fado
Fugi de todos os destinos

mas eles ainda atravessam o meu caminho
como fantasmas que se revezam para assombrar-me.

De nada adianta dormir;
a lida contra o vento se estampa em meu rosto
como palavras num pergaminho
e é irreversível a marca das tempestades.

Ninguém devora a carne do tempo impunemente.

Das braçadas contra a correnteza,
restou o cansaço, ficou a incerteza do porto
ancorada em presenças ausentes,
cidades perdidas no mapa da memória.

Fiz de nuvens o meu castelo alado
e sobre escombros escrevi minha história.
De nada adiantou seguir os desvios
e quebrar as correntes:
ninguém consegue fugir ao fado.
De outro tempo
Essa casa desabitadaperdida no abandono dos ventos
(que sopram sem direção)
é o corpo que veste a minha alma.

Suas portas batem
atrás de um adeus sem data,
cavando feridas nas paredes retintas,
guardando ferrugem nas trancas
e escoriações nos portais.
Há hera nas vigas e nos muros,
fechando porteiras, lacrando janelas
até sempre ou nunca mais.

No jardim, presente e passado
perdem-se soterrados
pelo  musgo que cresceu.
Dentro de mim, acordado,
geme um silêncio de muitas eras
e  grita a lembrança de um tempo
que não é o meu.
Da espera
Dentro de mim existe um anjo
que, todas as manhãs, abre as asas
e voa pela imensidão;
ele põe um arranjo em meus cabelos,
ensina-me a calar os desejos
e a conviver com a solidão.

Aprendo com ele a espera
e a sobrevivência em tempos de guerra;
aprendo a ler os sinais do tempo
e dos ventos que sopram noutras direções.

Esse anjo, de vez em quando,
fecha os olhos, abre as asas
e vai-se embora por algum tempo,
para que eu desaprenda todas as lições!
Enquanto não vens
São teus olhos que eu procuroquando acordo,
na desordem dos sonhos inacabados
que ficam entre os lençóis.
São tuas mãos que eu busco
quando durmo,
no vazio do dia terminado
sem uma palavra.

Enquanto não vens,
eu faço e desfaço mantas,
escuto teus passos na escada,
ponho os pratos na mesa,
entoo mantras
e rezo
para que não te percas pela estrada.
Dono do tempo
Quando chegares, deita tua cabeça
em meu regaçoe colhe a dia, como se fosses o dono do tempo.
É tudo teu: o quintal ensombrado,
a rede estendida na varanda
e todas as minhas horas.
São teus também os meus olhos de criança,
que passeiam pela casa e pelo teu corpo,
como se andassem pelas ruas de Veneza.

Entre e coma do meu pão e beba do meu vinho,
mas não desfaça as malas.
Rega a flor que plantaste
e me diz umas poucas palavras.
O muro coberto de hera, a lua na calçada
e as libélulas
escutarão com tristeza os teus passos
indo embora
antes da madrugada.

Eu, não.
A espera me ensinou o silêncio,
mas não abalou a certeza da tua volta
(a qualquer hora).
Tu podes ir.
Só te peço que não digas nada.
Não olhes para trás nem batas a porta ao sair.

                        
Fortaleza – Ceará - Brasil, 2011 
(O livro “De Olhos Entreabertos” é um acervo de perto de cem poemas
separado em capítulos temáticos. Prefácio de Dimas Macedo
 e orelhas (badanas) de Ana Jácomo e Nicolau Saião)






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