REVISTA TRIPLOV
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Aíla Sampaio Desvarios de maio Desse olhar esgarçado sobre o poente, fiz a tarde com seus desvarios de maio. Não fosse hoje um domingo qualquer eu teria motivos para não ler nada e veria TV, bandeira branca a meio-palmo e mansidão para seguir as procissões de Maria. Mas não é assim o meu desenho tão fácil de distinguir as cores e as linhas rascunhadas. Surpreendem-me vontades de sesta, sono profundo ao meio-dia e saudades que não posso mais matar. Tanta abstinência, tantas orações e o coração não sara... continua a sangrar ao menor esforço e a me matar aos poucos todos os dias. | |
Silêncio antigo | |
Há sempre uma casacom seu silêncio antigo e seus conhecidos fantasmas a nos habitar. Há sempre a memória de um amor interdito, a dar a ilusão de que a felicidade está apenas no que poderia ter sido. O tempo vivido desliza, guardando abismos que devoram a carne do tempo. O que nos pertence é apenas o presente e a certeza de que eterno é somente o que não se realiza. | |
Mudando o enredo | |
Nada de metades ou frações.Nasci para inteiros, para desmedidas; não para a vida inteira, mas para o instante que pode esvair-se em segundos ou durar para sempre. Foi assim desde o início: o possível, o viável, a polianesca resignação que, por detrás das cortinas, era desejo mal-resolvido. Aprendi a sair do eixo e a brigar com a impossibilidade do prefixo por isso: para mudar o enredo da minha história e seu desfecho. | |
Viagem | |
A vida é o vagão de um trema qualquer hora a soltar-se pelos trilhos. Se fendem as trancas na ferrugem das peças, nenhuma alavanca detém a carga. Sigo. Passageira sem estação nem rota. Quando vou, estou indo de volta como se por mim tudo fosse outra vez sem ter sido nunca a primeira. Meu corpo é minha bagagem, arma atenta à cicatriz que não fecha e a que se cava em tua ausência materializada na cadeira vazia. Ao meu lado, o passado: sentença do efêmero, algema sem trancas. Sigo como um vagão desgarrado do comboio, querendo ainda obedecer ao freio das alavancas. | |
A cidade | |
A cidade me escondeentre ruas e esquinas, perdida em mim como suas avenidas entre semáforos e arranha-céus. Não sabe do mundo inteiro que dorme quando fecho os olhos nem que suas ruas e casas são apenas artérias de um corpo onde a geografia não dimensionou mapas. A cidade me esconde sob suas luzes e não percebe nos subterrâneos abismos dos meus olhos, um coração que pulsa e é maior que ela. | |
Trama do tempo | |
O tempo tece sua tramasilenciosamente como quem arquiteta armadilhas e submerge ilhas na memória. O chão seguro de outrora de repente é abismo, - subterrânea rua sem saída em que andamos desavisados dos perigos. Não guardasse eu a lembrança das tuas mãos plantando gerâneos em meus cabelos, já estaria ao vento a nossa história. | |
Fado | |
Fugi de todos os destinos mas eles ainda atravessam o meu caminho como fantasmas que se revezam para assombrar-me. De nada adianta dormir; a lida contra o vento se estampa em meu rosto como palavras num pergaminho e é irreversível a marca das tempestades. Ninguém devora a carne do tempo impunemente. Das braçadas contra a correnteza, restou o cansaço, ficou a incerteza do porto ancorada em presenças ausentes, cidades perdidas no mapa da memória. Fiz de nuvens o meu castelo alado e sobre escombros escrevi minha história. De nada adiantou seguir os desvios e quebrar as correntes: ninguém consegue fugir ao fado. | |
De outro tempo | |
Essa casa desabitadaperdida no abandono dos ventos (que sopram sem direção) é o corpo que veste a minha alma. Suas portas batem atrás de um adeus sem data, cavando feridas nas paredes retintas, guardando ferrugem nas trancas e escoriações nos portais. Há hera nas vigas e nos muros, fechando porteiras, lacrando janelas até sempre ou nunca mais. No jardim, presente e passado perdem-se soterrados pelo musgo que cresceu. Dentro de mim, acordado, geme um silêncio de muitas eras e grita a lembrança de um tempo que não é o meu. | |
Da espera | |
Dentro de mim existe um anjo que, todas as manhãs, abre as asas e voa pela imensidão; ele põe um arranjo em meus cabelos, ensina-me a calar os desejos e a conviver com a solidão. Aprendo com ele a espera e a sobrevivência em tempos de guerra; aprendo a ler os sinais do tempo e dos ventos que sopram noutras direções. Esse anjo, de vez em quando, fecha os olhos, abre as asas e vai-se embora por algum tempo, para que eu desaprenda todas as lições! | |
Enquanto não vens | |
São teus olhos que eu procuroquando acordo, na desordem dos sonhos inacabados que ficam entre os lençóis. São tuas mãos que eu busco quando durmo, no vazio do dia terminado sem uma palavra. Enquanto não vens, eu faço e desfaço mantas, escuto teus passos na escada, ponho os pratos na mesa, entoo mantras e rezo para que não te percas pela estrada. | |
Dono do tempo | |
Quando chegares, deita tua cabeça em meu regaçoe colhe a dia, como se fosses o dono do tempo. É tudo teu: o quintal ensombrado, a rede estendida na varanda e todas as minhas horas. São teus também os meus olhos de criança, que passeiam pela casa e pelo teu corpo, como se andassem pelas ruas de Veneza. Entre e coma do meu pão e beba do meu vinho, mas não desfaça as malas. Rega a flor que plantaste e me diz umas poucas palavras. O muro coberto de hera, a lua na calçada e as libélulas escutarão com tristeza os teus passos indo embora antes da madrugada. Eu, não. A espera me ensinou o silêncio, mas não abalou a certeza da tua volta (a qualquer hora). Tu podes ir. Só te peço que não digas nada. Não olhes para trás nem batas a porta ao sair. | |
Fortaleza – Ceará - Brasil, 2011 | |
(O livro “De Olhos Entreabertos” é um acervo de perto de cem poemas separado em capítulos temáticos. Prefácio de Dimas Macedo e orelhas (badanas) de Ana Jácomo e Nicolau Saião) http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_17/aila_sampaio/index.html |
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quarta-feira, 6 de julho de 2011
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