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sábado, 1 de setembro de 2012

ENSAIO - Sevilha andando: a mulher na lírica moderna Aíla Sampaio (11.08.2012)

Ensaio no Caderno LER do Diário do Nordeste da amiga/professora Aíla Sampaio sobre o poeta pernambucano João Cabral de melo Neto. 

Sevilha andando: a mulher na lírica moderna

'Este ensaio faz uma análise do livro Sevilha andando, de João Cabral de Melo Neto, partindo do princípio de que o título da obra apresenta uma metáfora "in absentia" cujo referente evocado é a mulher'

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1168962

Este ensaio faz uma análise do livro Sevilha andando, de João Cabral de Melo Neto, partindo do princípio de que o título da obra apresenta uma metáfora "in absentia" cujo referente evocado é a mulher
Procura-se, nos poemas que compõem o volume, dados que confirmem o termo ausente, aqui sugerido, a fim de comprovar se, através do nome da cidade - Sevilha - sobre o qual recai a atenção imediata do leitor, o poeta celebra em versos a mulher idealizada.

Introdução
Embora nas obras de João Cabral a forma predomine sobre o conteúdo, fazendo aflorar uma poesia iminentemente cerebral, podemos sentir em Sevilha andando a inserção de uma sensualidade sutil já ensaiada nas entrelinhas de Uma faca só lâmina - livro que, tendo como indicação o subtítulo "Serventia das idéias fixas", transparece uma obsessão - obsessão essa que, segundo Marly de Oliveira (1994 p.19) "é sobretudo uma ausência, que deve ser preenchida e, muito provavelmente, de natureza amorosa".

Como assinala Hugo Friedrich (1991 p.211) a respeito da lírica moderna, "Quem é capaz de ouvir, percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto", um amor que está longe de talhar os versos lacrimosos do Romantismo, mas que pode estar embutido nas sugestividades ambíguas através da arte e do efeito da técnica; e o que não falta na poética de Cabral é a linguagem enxuta proveniente da experiência exaustiva com o manejo das palavras.

A metáfora do título
De acordo com Aristóteles (apud Harries, 1992 p.78 "a metáfora consiste em dar à coisa um nome que pertence a outra coisa". Implica, consequentemente, uma nomeação falha, que conduz um movimento de interpretação só concluído quando o termo metafórico é substituído por uma forma mais clara para o entendimento. A lírica moderna, por sua vez, preza a criação de obras que desencoragem a interpretação. Archibald Macleish (apud HARRIES, 1992 pp.80-1) diz que o poema "não deveria significar, mas ser" - pensamento com o qual comunga Valèry (idem p.81) na sua busca pelo estado puramente ideal do poema. É, porém, inegável que o poema aponta para além de si mesmo; ele nunca será suficientemente puro, "suas palavras sempre trarão traços de música sensual da natureza que o poeta não consegue silenciar ao ansiar por uma eternidade fugidia" (HARRIES, 1992 p.86). E, como nos diz Kant (apud HARRIES, 1992 p.81) na Crítica do Juízo, toda obra de arte acaba comportando um sentido; para se tornar pura, ela teria que se negar enquanto obra de arte. A verdade é que se podem perceber significações várias, latentes em símbolos e figuras de linguagem, como se o valor do poema estivesse, assim, no apuro exigido do leitor na leitura subjacente.

Além da linguagem
De acordo com Karsten Harries (1992 p.87), a metáfora implica ausência, pois ela, que é mais do que a abreviação de uma linguagem direta, acena para aquilo que transcende a linguagem. Com base nesta concepção e concordando com a existência da referencialidade na obra de arte, sugerimos que o título da obra - Sevilha andando - encerra uma metáfora, cujo grau de apresentação é "in absentia". Há um termo ausente, um referente que é evocado. Feita a leitura dos poemas que compõem o volume, observamos que o título sintetiza a obra e que o que há de essencial é a objetivação da mulher através da cidade Sevilha, que foi eleita pelo poeta como ideal. Façamos a seguinte formulação: Sevilha, uma mulher andando; Sevilha é mulher como a mulher é Sevilha. Percebemos uma metáfora significativa por decorrer de uma espécie de proximidade semântica obtida entre termos, apesar do distanciamento literal. Segundo Paul Ricoeur, (1992 p. 148), "a similaridade não é nada mais do que essa aproximação que revela um parentesco entre idéias heterogêneas". No domínio das conotações, mulher e cidade passam a ter uma estreita relação, havendo, de certo modo, uma interseção sêmica entre o grau zero e o termo figurado. No sintagma Sevilha andando, temos uma comparação implícita - comparando e comparado terminam por confrontarem-se, dividindo semas interativos.

A estrutura
O livro Sevilha andando traz-nos 31 poemas. Ora percebemos neles uma homenagem à cidade espanhola, numa apologia que denota um forte sentimento de identificação do poeta; ora concebemos essa identificação como pretexto para, através da cidade, colocar em versos a presença da mulher que, como Sevilha, é digna do seu canto de amor. Cidade e mulher contraem uma aliança com as palavras, de modo a driblarem o discernimento do leitor. Alguns títulos de poemas sugerem, em seu bojo, uma antropomorfização ao conferirem à cidade atributos e capacidades não condizentes com a sua condição material e inanimada ("Viver Sevilha", "Cidade de nervos", "Sevilha em casa", "Sevilha andando", "Sevilha ao telefone", "Mulher cidade", "Sevilha viva"). Após a leitura superficial, descobrimos não apenas os atributos da cidade, mas que ela vai se fazendo mulher e adquirindo vida num ser objetivado. Funciona, pois, como um referencial para concretizar um intuito: a construção de poemas para a figura feminina que faz jus às qualidades fascinantes de Sevilha. E nesse jogo mulher-cidade e cidade-mulher o poeta, sem lançar mão de uma linguagem ornamentada, mostra que a lírica tecnicista pode sutilmente ultrapassar a impessoalidade. Senão vejamos em que consiste o segredo de Sevilha: (Texto I)

Leitura do poema
O fascínio que a cidade exerce está no andar da mulher, no modo particular como ela se movimenta, na dinamicidade do corpo ritmado, no manejo especial que encanta e seduz. O jeito tão peculiar da sevilhana andar, no entanto, é redimensionado numa forma de ser, que, ao ser atingida por uma não nativa, torna-a igualmente encantadora. Aí, a não sevilhana passa a ser não apenas sevilhana, mas a própria Sevilha, concentrando, assim, todas as qualidades inerentes à cidade: "Assim, não há nenhum sentido / em usar o "como" contigo: és sevilhana, não és "como a", és Sevilha, não só sua sombra". (É de mais, o símile p.634-5).

Trechos
TEXTO I
De Joaquim Romero Murube

ouvi certa vez: "De Sevilha

ninguém jamais disse tudo.

Mas espero dizê-lo um dia."

Morreste sem haver podido

a prosa daquele projeto ;

Sevilha é um estado de ser,

menos que a prosa pede o verso.

Caro amigo Joaquim Romero,

nem andaluz eu sou, sequer,

mas digo: O tudo de Sevilha

está no andar de sua mulher.

E às vezes, raro, trai Sevilha:

pude encontra-lo muito longe,

no andar de uma não sevilhana,

o tudo que buscas. Ainda? Onde?

(O segredo de Sevilha p.637-8)

FIQUE POR DENTRO
Um breve retrato do artista
João Cabral de Melo Neto (PE, 1920; RJ, 1999) despreza o lirismo tradicional, com sua musicalidade fácil e seu exagero metafórico, concebendo a poesia como uma lenta e sofrida pesquisa de expressão: uma vez escrita, a palavra é retomada, em novas sugestões, até a exaustão das imagens. Busca a palavra objetiva, exata: o geometrismo da linguagem adapta-se à aridez do solo nordestino. Em Morte e Vida Severina, narra a trajetória de um sertanejo, Severino, que abandona o agreste, expulso da terra pela seca, rumo ao literal, encontrando, nesse percurso, apenas miséria e morte. Seu universo poético assenta-se em três temáticas básicas: o Nordeste (retirantes, tradições, folclore, os engenhos, os cemitérios); a Espanha (paisagens, com destaque aos pontos comuns com o Nordeste brasileiro) e a Arte (a pintura de Miró, de Picasso, a metapoesia). Sua poesia é resultado de intensa reflexão, e seu discurso funciona como um aprendizado da linguagem das pedras , dos desafios da existência.

AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*
*Professora da Unifor


ENSAIO

A mulher e a cidade sob os olhos do poeta

11.08.2012




A comparação da mulher com a cidade parece não satisfazer o poeta. Ele as considera tão similares que uma é a outra, não apenas reprodução ou reflexo. E Sevilha - substantivo concreto - pode converter-se facilmente em Sevilha - adjetivo - caracterizador para enfatizar a cidade como atmosfera agradável, como a maneira de ser da mulher completa, capaz de atender às expectativas do homem que a vivencia. (Texto II)

Da atmosfera
A mulher é viva como Sevilha, emana sensações picantes como a atmosfera cítrea da cidade, densa e múltipla como um formigueiro, capaz de ser o centro de tudo, com o poder de dominar e ser o sol até onde o sol é mais impossível. A relação a dois tem como alicerce a mesma atmosfera de Sevilha: (Texto III)

Sevilha é um ideal de relação. A partir dela, os sentimentos vão sendo delineados e, se correspondida a expectativa da mulher também ideal, Sevilha, assim, se interpõe como parâmetro do envolvimento total. Notemos, outra vez, a presença do denso e do múltiplo conotado pela alusão à "formigagem", o relacionamento que adquire consistência através do constante rumor das vidas entrelaçadas, da convivência possível, porque reciprocamente benéfica.

A cal e a pele
Voltando à descoberta do segredo de Sevilha, o poeta subentende nas paredes da cidade, o corpo da mulher: "Qual o segredo de Sevilha? / Saber existir nos extremos / como levando dentro a brasa / que se reacende a qualquer tempo. / Tem a tessitura da carne / na matéria de suas paredes, / boa ao corpo que a acaricia: / que é feminina sua epiderme". Note-se a sugestão do toque dos corpos, da carícia na epiderme feminina, do amor carnal realizado (ou na iminência de).

A alusão indireta à mulher está na alusão direta à cidade que a metaforiza. Sevilha é a mulher que traz dentro de si a brasa da atração constante, de modo que a sua matéria tem a tessitura da carne, aprazível às carícias, ao fogo da conjunção dos corpos. Admitindo que a cidade, matéria rígida, não pode, como tal, reacender a brasa, lhe confere um novo atributo - o nervo: "Mas o esqueleto não pode, / ele que é rígido e de gesso, / reacender a brasa que tem dentro: / Sevilha e mais que tudo, nervo". (Cidade de nervos p.638).

Como se sabe, o nervo é um atributo dos seres vivos e animados; no que concerne à Anatomia, é o responsável pela transmissão das sensações, por via de estímulos. Assim, o poema parece trazer a mulher disfarçada em cidade, não numa cidade qualquer, mas naquela eleita como ideal.

A posse
Sevilha se transporta, transfigurada na intimidade do lar que a acolhe: "Tenho Sevilha em minha casa. / Não sou eu que está chez Sevilha. / É Sevilha em mim, minha sala. / Sevilha e tudo o que ela afia". (Sevilha em casa p.638)

A sensação de ter alcançado o ideal se configura na posse de Sevilha, que agora esta ao alcance da mão. Sevilha-mulher penetra todo o homem numa invasão plena, condutora do fascínio peculiar à cidade. E, tão íntima, Sevilha se faz carne (mulher) e se deixa habitar (possuir): " Tenho Sevilha em minha cama, / eis que Sevilha se faz carne, / eis-me habitando Sevilha como é impossível de habitar-se". (Lições de Sevilha p.644)

O homem possui a mulher concretamente e mostra que a Sevilha-cidade é habitada de uma maneira diferente. Na posse, mulher e cidade se distinguem. O desejo de intensidade do amor partilhado se sobrepõe ao questionamento sobre o tempo da duração: "Se viver-te será curto, / como pequena e Sevilha, / que viver-te seja intenso / carregado qual nova pilha". (Mulher da Panadería p.642).

Observe-se a semelhança de sentido destes versos com os de Vinícius de Morais no "Soneto de fidelidade": "Que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure, vazados numa linguagem seca, menos dada ao tom romântico". Assim, a mulher se faz bússola, iluminando e direcionando o aprendizado do amor que faz a vida renascer, reacendendo o homem: (Texto IV)

Leituras
Encontrar o amor é sair da escuridão. Os inseguros primeiros passos do "voltar a ser" denotam o caminho do aprendizado dos sentimentos adormecidos que renascem; o poeta acorda para reencontrá-los no "sol negro" que metaforiza a mulher morena, tão encantadora e única como Sevilha. A cabeleira negra é sempre referida e reluz como um "farol às avessas", como se o amor fosse uma luz perceptível apenas para quem o experimenta e dimensiona a sua existência no outro ser que, igual a uma bússola, mostra a direção exata da vida.

A ideia de renascimento vem também impressa nestes versos de "Viver Sevilha" (p.636): "Só em Sevilha o corpo está / com todos os sentidos em riste / sentidos que nem se sabia, / antes de andá-la que existissem; / sentidos que fundam num só: / viver num só o que nos vive, / que nos da a mulher de Sevilha / e a cidade ou concha em que vive".

Das sugestões
Sevilha não apenas desperta os sentidos, os mantém em riste - expressão bastante sugestiva no âmbito da sexualidade. O homem atenta para as sensações corpóreas e experimenta estímulos inusitados. O corpo desperto vivencia o amor carnal e descobre na mulher a fonte de um prazer completo, desconhecido até então. O amor funde os dois seres envolvidos, unificando-os. Essa relação é somente possibilitada pela "mulher de Sevilha" e pela "cidade ou concha em que vive" - a mulher sensual, sedutora que, através do seu corpo, dá ao parceiro o acolhimento da concha e o faz, metaforicamente, passear por ele como pela cidade identicamente aconchegante. E, no último poema do livro, o poeta canta a cidade espanhola como a dizê-la que a distância física em que se encontra dela é reduzida pelo fato de ter ao seu lado a presença da mulher que, como fêmea, recria a sua sedução citadina. (Texto V)

O encanto desmesurado de Sevilha presentifica-se constantemente na vida do poeta através da mulher tão completa como mulher, como completa é a cidade em sua ótica. A afeição pela cidade espanhola e por todas as qualidades nela encontradas foram transpostas para a figura feminina que correspondeu às suas idealizações, enlevando-o numa relação plena enquanto homem - como o enlevava Sevilha-cidade numa relação sobretudo aprazível enquanto habitante.

Trechos
TEXTO II
Só com andar pode trazer

a atmosfera Sevilha, cítrea

o formigueiro em festa

que faz o vivo de Sevilha.

Ela caminha qualquer onde

como se andasse por Sevilha.

Andaria até mesmo o inferno

em mulher da Panadería.

Uma mulher que sabe ser

mulher e centro do ao redor,

capaz de na Calle Regina

ou até num claustro ser o sol.

Uma mulher que sabe ser-se

e ser Sevilha, ser sol, desafia

o ao redor, e faz do ao redor

astros de sua astronomia.

(Sevilha andando (I) p.639)

TEXTO III
Carregamos Sevilha, os dois,

quem foi e quem lá nunca foi.

que onde quer que estejamos sozinhos .nos traz Sevilha, seu dentro íntimo,

de uma casa que vai comigo.

e que invoco quando e preciso.

Então, muda todo o ambiente,

ei-nos em Sevilha, de repente,

em nosso a dois e até ouço fora

sua formigagem rumorosa.

(Sevilha de bolso p.641-2)

TEXTO IV
Acordar e voltar a ser,

re-acender num escuro cúbico;

e os primeiros passos que dou

em meu re-ser são inseguros.

Re-ser em tal escuridão

é como navegar sem bússola. .

Eu a tenho, alí, a meu lado,

num sol negro de massa escura:

que é a de tua cabeleira,

farol às avessas, sem luz,

e que me orienta a consciência

como a luz cigana que reluz.

(Sol negro p.642)

TEXTO V
Cantei mal teu ser e teu canto

e enquanto te estive, dez anos;

cantaste em mim e ainda tanto,

cantas em mim teus dois mil anos.

Cantas em mim agora quando

ausente, de vez, de teus quantos,

tenho comigo um ser e estando

que é toda Sevilha caminhando.

(Presença de Sevilha p.651)

SAIBA MAIS
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989.

CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis: Vozes, 1977

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991

DUBOIS, J. et alii. Retórica geral. São Paulo: Cultrix, 1974

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas cidades, 1991 


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1168973


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