Ensaio da amiga Aíla Sampaio para o Caderno CULTURA, do Diário do Nordeste no dia 17/07/11, sobre a Antologia "O cravo roxo do diabo"": o conto fantástico no Ceará. Recentemente lançado em Fortaleza.
ENSAIO
A fantástica literatura do Ceará
Publicado em 17 de julho de 2011
Recentemente, foi lançada em Fortaleza a
Antologia "O cravo roxo do diabo": o conto fantástico no Ceará,
organizada pelo escritor Pedro Salgueiro. A pesquisa durou três anos e
resultou num rico acervo do gênero, revelando a prodigiosa criação dos
escritores cearenses desde o século XIX, quando vieram a público as
primeiras publicações de textos literários em nosso estado
A
Antologia "O cravo roxo do diabo": o conto fantástico no Ceará é a
primeira coletânea de contos fantásticos produzidos na terra de Alencar.
A
ideia inicial era traçar apenas um panorama do conto, mas a pesquisa
avultou-se e decidiu-se, além dos 172 contos selecionados, inserir dois
apêndices, com 17 capítulos de romances e 60 poemas, compondo, assim, um
panorama amplo do texto fantástico cearense produzido entre os séculos
XIX e o XXI.
O volume da pesquisa fez necessária a participação
de outros três nomes da nossa literatura: Sânzio de Azevedo, Alves de
Aquino (Poeta de Meia Tigela) e Carlos Roberto Vasconcelos, o que
resultou num livro de 674 páginas, cujo título foi tomado de empréstimo
de um conto de Álvaro Martins, infelizmente não localizado pelos
pesquisadores. A bela capa criada pelo escritor Raymundo Neto, bem como o
trabalho gráfico da Expressão dão ao vultoso acervo o aspecto de obra
definitiva. A istematização dos cânones do Fantástico passou por muitas
revisões. A mais tradicional, de Todorov, no livro Introdução à
literatura fantástica, assevera que ele se alicerça por meio da
hesitação do leitor em ´aceitar´ ou não os fenômenos narrados, desde que
tais fenômenos não predisponham uma leitura alegórica nem poética.
O enquadramento
O
crítico estruturalista opõe, ainda, o que ele chama fantástico a outros
dois conceitos fronteiriços: o estranho ou o maravilhoso; o fantástico
ocupa o tempo da incerteza, da vacilação entre aceitar ou não o evento
extranatural; assim que se escolhe uma resposta ou outra, o fantástico é
abandonado e entra-se no domínio de um dos gêneros vizinhos: o estranho
ou o maravilhoso. Nessa acepção, nem todos os textos aqui coletados
estariam inseridos no gênero.
Tomando, entretanto, a concepção
mais atual, de Ana María Barrenechea, que afirma a configuração do
fenômeno em forma de problemas feitos a-normais, a-naturais ou irreales
em contraste com factos reais, normais ou naturais, considera-se
fantástico todo texto cujo enredo encene acontecimentos que transponham
as leis naturais, ou seja, que coloquem em conflito o mundo empírico e o
mundo fantasioso.
A Antologia
Na
primeira parte da antologia, dedicada aos contos, constam 172 narrativas
organizadas em ordem cronológica do ano de nascimento dos seus autores,
tal como ocorre nos dois Apêndices. Todos os textos, embora focalizem o
extranatural por procedimentos estéticos diferentes, inserem-se no que
se denomina, hoje, literatura fantástica, numa acepção ampla do gênero,
tomando-o, pois, como narrativas de mistérios que confrontam o racional e
o irracional.
No Ceará, o primeiro conto fantástico de que se
tem registro foi escrito por Juvenal Galeno. "Senhor das Caças" tem a
mesma estrutura das narrativas de Álvares de Azevedo em Noite na
Taverna: enquanto trabalham com a mandioca, num serão na farinhada, os
sertanejos contam histórias de caiporas, aventuras de caçadas e
encantamentos. São histórias dentro de uma história. Igual estrutura
está no conto "Capitão Maciel, 3.ª companhia", de Tomás Lopes, cujo
enredo deixa claros seus desdobramentos: "Depois do jantar, na salinha
do café, falava-se de casos estranhos, mistérios do além-túmulo. Cada um
contava a sua história, todos, porém, afetando descrença, ceticismo,
explicando tudo pela coincidência", numa tentativa de racionalização que
não impede o espanto quando se constata a aparição de um morto, motivo
também presente em Cruz Filho ("A basílica"), cujo enredo comprova a
presença da ex-escrava nas ruínas da igreja onde morreu. Florival
Seraine, igualmente, em seu "Guajará", coloca o insólito em contação de
´causos´ numa venda.
O realismo cearense foi prodigioso no
espírito inventivo das narrativas fantásticas do início do século XIX.
Duas representações significativas estão nas narrativas de Pápi Jr. ("A
cruz-das-malvas") e Oliveira Paiva ("O ar do vento, Ave-Maria"). No
enredo do primeiro, há uma atmosfera propícia para o sobrenatural, na
descrição esmerada da escuridão da noite impenetrável e compacta,
corria-nos pela frente como um largo pano sujo de fuligem, em que
aparece, na estrada, em frente à cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa
que lá foi enterrada. Na do segundo, a aparição de um monstro, no meio
da noite, carregando a cabeça de uma mulher (fazendo, ainda, umas
caretas horrorosas) para enterrar.
E vários motivos dão asas à
criação do conto fantástico cearense, como as peripécias do capeta ("O
dia aziago", Lopes Filho), aparição de almas penadas ("Alma penada", de
Américo Facó), espectros ("Espectros", Gustavo Barroso), visagens
("Junho é um mês que não tem fim", de Batista de Lima). Histórias de
pescador com aparição de sereias ("Sereias", Herman Lima) ou botijas
("Uma história fantástica", Martins d´Alvarez; "A botija", Genoíno Sales
e "A botija", Lustosa da Costa).
Outras faces
Algumas
vezes, não se configura nenhum fenômeno, tão somente a atmosfera de
mistério estabelece a presença do extranatural ou seu prenúncio, como
ocorre no conto "Casas mal-assombradas" de, Carlyle Martins (Numa visão
macabra e sinistra, atestando a transitoriedade de uma vida de opulência
e conforto, a velha casa, como que indiferente ao perpassar dos anos,
ensombrada pelas mongubeiras sempre monótonas e sussurrantes, tinha as
paredes carcomidas e cobertas de fendas./.../
Por seu aspecto
aterrador, atestava ela a glória do passado distante, obscurecido pelas
brumas dos tempos e demonstrando como a felicidade humana é incerta e
passageira...) e em "A Oiticica", de Otávio Lobo (Se alguém, rompendo o
escuro, passa debaixo de alguma oiticica, sente arrepios de medo, pavor
de visagens e, ainda, assombrações de almas do outro mundo).
Fique por dentro A gênese do discurso
O
gênero fantástico tem suas raízes nas histórias de deuses, fadas e
feiticeiras da Antiguidade Clássica, mas se consolidou como estética a
partir do Romantismo, com suas narrativas góticas. Como todo gênero, o
Fantástico teve estabelecidos os seus cânones, continuamente
fundamentados e revisados por teóricos como Roger Callois, Tzvetan
Todorov, Irene Bessiérre, Louis Vax, Victor Bravo, Filipe Furtado, e,
mais adiante, a filóloga argentina Ana María Barrenechea, entre outros.
Mestres do Horror, como H.P. Lovercraft, E. T. A. Hoffman, Edgar Allan
Poe e Teophile Gautier deixaram um legado para os amantes do
sobrenatural e exerceram influências na ficção fantástica produzida em
todo o mundo.
AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*
* Professora da Unifor; poetisa e ensaísta, autora do livro Os fantásticos Mistérios de Lygia (2009)
ENSAIO
Aspectos de uma engenhosa escritura
Publicado em 17 de julho de 2011
São bastante prodigiosos os engenhos dos nossos
contistas, seja a dar vida a uma bailarina de bronze, num delírio ("A
cigana", de Pimentel Soares); a configurar um milagre de um padre que
salva, com sua atitude, um jovem médico da fúria de fanáticos religiosos
("Milagre" - Fran Martins), seja a atribuir a concretização de um fato
insólito à fé em Nossa Senhora, como o faz João Clímaco Bezerra
("História do mar"), ou, então, a fazer sorrir um macabro boneco de
Judas ("Judas", Edigar de Alencar).
Entre muitos dos textos
modernos, permanecem os temas tradicionais, como a metamorfose e a
morte: no conto "Pedra encantada", de Raquel de Queiroz, A história é
que toda véspera de Ano-Bom ao bater da meia-noite a pedra se
desencanta... molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno
do oleiro. /.../ E por fim. Exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele
acorda à beira da água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura
ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho. Já
na narrativa "O 10 nos limites do Bené Gavião", de Barros Pinho, "O Bené
pulou este batente e saiu daqui com uma cabeça de onça, o corpo de
homem e asas de gavião encantado".
Elementos temáticos
A
morte toma forma humana em "Dizem que os cães veem coisas", de Moreira
Campos, que a personifica na figura de uma mulher, antiguíssima, atual e
eterna, para levar a vida de uma criança que se afoga na piscina
enquanto os pais divertem-se numa festa. Do mesmo modo, no romance A
Casa, de Natércia Campos, além da antropomorfização da casa, que é a
narradora-testemunha de muitas histórias que se passaram sob o seu teto,
a morte também assume a forma de uma pessoa que surge inusitadamente
quando ocorre um suicídio por enforcamento em um dos quartos. No conto
"O encanto recidivo", de Giselda Medeiros, os mortos dançam e pensam;
nos enredos criados em "A capa de chuva", de Sânzio de Azevedo e em "As
almas do rio perdido", de Lucineide Souto), pode-se perfeitamente
conversar com pessoas mortas; em "Terror", de Glória Martins, bonecas
adquirem vida, riem pavorosamente e cometem crimes.
Mistérios do além
No
conto "O Homem de Neandertal" de Rubens de Azevedo, não há fronteira
entre o presente e o passado; o narrador tenta proteger um amigo
arqueólogo de um atentado fatal, mas não consegue: " não sonho. Parece
que penetro numa fenda do tempo e participo realmente daquela vida
primitiva". O arqueólogo, mesmo trancado no quarto do amigo que o vigia
pelo lado de fora, é assassinado, durante a noite, por um homem das
cavernas que já foi seu objeto de estudo e já vinha, há muito, ameaçando
tirar-lhe a vida. Já Raimundo Batista Aragão instaura o sobrenatural na
figura de uma alma penada que aparece na estrada para pedir ajuda aos
incautos. Diz o narrador de "O assobiador do Folha Larga": "sexta-feira,
13 de agosto e noite de lua cheia. Como reforço às possibilidades de
encontro com os mistérios do além, havia e bastante comentado, o
"Assobiador do Folha Larga" cuja figura era tida como infalível. /.../
Corcunda, rosto coberto, pernas alongadas e a imitar com perfeição as
pernas de um alicate. Fez-me lembrar de relance a fealdade do Corcunda
de Notre Dame. Conduzia no dorso certo fardo volumoso, talvez pesado e
sobretudo incômodo, uma vez que o soprar constante demonstrava cansaço.
Aproximou-se ainda mais, do local onde eu me encontrava e deu o ar da
costumeira e civilizada educação", tratava-se, na verdade, de um filho
que há tempos assassinara o pai e ficara a vagar, carregando um peso nas
costas, qual Sísifo castigado, inexoravelmente, por Zeus.
As transposições
No
conto "Quadros em movimento", de Lourdinha Leite Barbosa, ´os
personagens´ dos quadros afixados na parede do apartamento da narradora
libertam-se e saem, como em rebelião, cada um contando a sua história de
aprisionamento nas telas; quando o leitor tende a racionalizar o
acontecimento, atribuindo-o a um delírio da narradora que se confessa
extremamente cansada, eis que ela desperta com a queda de um quadro e
percebe que a tela está completamente branca, sem vestígio de tinta.
Já
no conto de Rosemberg Cariri, ocorre uma situação inversa: um homem
adentra uma tela e, logo que se integra à paisagem, numa sensação de
bem-estar, descobre a presença de um leão feroz. No enredo de
"Escadaria", de Mônica Silveira, a personagem entra no cenário de um
desenho, depois retorna à realidade, como se o insólito fosse natural.
No "O leopardo da galeria Pedro Jorge", de Aldir Brasil, o narrador
inicia o conto declarando "Escapou do Bom Jardim depois do sumiço da mãe
e instalou-se para sempre nas paredes da cidade, feito colagem barata";
após inusitadas situações, o personagem desaparece sem que saibamos se
era realmente homem ou bicho. Em "A última obra", de Isa Magalhães, é a
leitora que entra na obra que está lendo, fundindo, assim, realidade e
ficção.
Múltiplos caminhos
A técnica da
tentativa de racionalização do evento fantástico, de que falamos há
pouco, própria do escritor consciente dos cânones do gênero, está também
presente na narrativa "Tugúrio", de Carlos Vazconcelos; quando o leitor
pensa que tudo o que o personagem viveu foi apenas um pesadelo, o
narrador o arrebata com a informação: (Texto I)
No universo
fantástico, tudo é perfeitamente possível: Unhas que surgem durante a
noite ("Unhas", de Ana Miranda); ondas que aparecem repentinamente e
invadem a cidade ("A onda", de Adriano Espínola); a moça que tem gatos
dentro de si ("A menina que tinha gatos dentro de si", Carmélia Aragão);
uma cidade estranha, dominada pelos dragões, que remete a uma alegoria
(que não se concretiza) da impossibilidade de se viver nas metrópoles
atualmente ("Os quatro dragões azuis", de Dimas Carvalho); o jogo de
dama ativo mesmo após anos da morte de seu dono, que o movimenta durante
a noite, seguindo o ritual de quando estava vivo ("Jogo de Damas", de
Pedro Salgueiro). No texto de Jorge Pieiro, "O bicado Oreblas", o que
ocorre no sonho do personagem se torna realidade quando ele acorda, como
se o mundo onírico e o real tivessem feito um pacto.
O
insondável mistério da morte permite muitas experiências estéticas e
inspira a criação de universos que transcendem a razão. No irônico
"Pequeno interlúdio para o desespero", de Airton Monte, a personagem
parece ter passado a vida a aprender a cozinhar para os seus familiares,
pois, quando atinge o seu objetivo e os procura para se sentarem à
mesa, todos viraram peças de pedra ou de cera; a descontinuidade do
tempo permite que ela não o perceba. Em "Folhas Caídas", de Nilze Costa e
Silva, a vida da personagem depende da vida da planta; quando o vegetal
murcha, a moça sabe que é hora de partir. No conto de Silas Falcão, "O
Celular", o protagonista, após retornar de um enterro, recebe a ligação
da pessoa morta. Já em "O sobrevivente", de Tércia Montenegro, são "as
nuvens ruins do céu" o elemento desencadeador de uma maldição.
O insólito
Acontecimentos
inusitados se desdobram nos enredos, tornando possível o que parece
absurdo. Nilto Maciel metamorfoseia um rosário na figura de um homem:
(Texto II)
O conto de Glauco Sobreira, "Como sou por dentro",
surpreende pela simplicidade com que os elementos narrativos, em poucas
descrições, criam o efeito fantástico: o personagem tem uma ferida no
tórax que o transforma numa ruína. Lembra a alegoria de "O homem do furo
na mão", de Ignácio de Loyola Brandão, mas a expressão concisa do autor
não permite encontrar, nem no final do texto, qualquer explicação
racional para o fenômeno. Do mesmo modo, lembra uma alegoria do homem
saturado pelo estresse da vida o enredo construído por Jesus Irajaci
Costa, em "Avenida Treze", onde o advogado Jorge Vargas, atormentado por
problemas domésticos, acorda num dia incomum e atinge o seu limite de
tolerância ao ver-se preso num engarrafamento. Ele se transforma num
gorila e, após deferir golpes nos automóveis parados na avenida, foge,
incólume, para o mangue.
Se os fantasmas ´alvacentos e
aterrorizantes´ eram os instauradores do insólito nos primeiros contos
fantásticos, fazendo jus a uma era de crendices em visagens e espectros,
no nosso tempo, o extranatural pode ser apenas a desagregação do real, e
os motivos se atualizam para traduzir o medo de um novo tempo: uma
planta, os pés inchados, um relógio, ou "humanoides planando sobre
discos metálicos". São muitos os contistas cearenses que enveredam pelo
insólito; alguns de modo mais tradicional, instaurando um clima
desagregador e o medo; outros naturalizam o extranatural, trazem-no para
a rotina do personagem sem a instauração do pavor, embora colocando o
leitor diante de fatos que fogem, então, totalmente da lógica
referencial.
Trechos
TEXTO I
"O
ambiente agora era úmido e fétido. Verificou as palmas das mãos com
olhos abismados. Mal podia acreditar. Teve visões difusas do seu
inferno. Mas ainda não era hora de purgar a alma. Só quando voltou a si
definitivamente é que foi recordando... aos poucos... E compreendeu, com
assombro, que o pesadelo estava apenas começando".
TEXTO II
"O
rosário não parava de se mover, arrastava-se pelo chão como um réptil,
dando voltas ao redor da mesa e de nós. E só então compreendemos a
verdadeira natureza das contas. Não, não se tratava de um rosário de
contas, de um objeto, mas de um ser vivo". Raymundo Netto, no conto
"Anúncio", cria um personagem que, no decorrer dos fatos, inquieta-se
com os olhares e as atenções que atrai; só no final revela-se o
mistério: "Foi ao banheiro, torceu para que a cunhada ali não estivesse,
e encostou-se à pia. Foi então que teve a conclusiva revelação: ante ao
armário do banheiro, percebeu que, ao invés de sua costumeira face,
havia um espelho!".